O mundo foi à loucura. E só tivemos dois segundos para pensar no que fazer, porque os inimigos batiam à nossa porta. Meu pai começou a agarrar coisas em seu escritório, e enfiar nas mochilas que carregávamos, dando ordens para que corrêssemos até a segunda porta à direita da casa. Theliel me puxou pelo braço e me arrastou, já que pelo choque eu mal conseguia me mexer. A porta que meu pai havia indicado, era um quarto, com apenas algumas lamparinas servindo de iluminação.
— Entrem aqui.
Segurei o bebê mais firme nos braços. E segui para onde meu pai indicava. Ele andou até um alçapão no chão, e puxou, revelando uma escada quase completamente escondida na penumbra. Gandallia foi a primeira a descer, seguida por Abbadon e depois Metatorn. Quando chegou a vez de Theliel, ele parou e colocou uma das mãos no meu rosto, o segurando com cuidado.
— Preciso deixar o rastreador em algum lugar longe. Se não vão começar a procurar aqui.
Theliel depositou um beijo delicado em meu nariz, e então um na testa. Quase gritei de raiva quando ele tentou apaziguar a ideia sem sentido com beijos suaves.
— Não vai dar tempo!
Agarrei o tecido de sua camisa com uma das mãos, tentando equilibrar o bebê na outra, e o puxei pra mim, fazendo força o suficiente para derrubar uma pessoa normal. Mas ele resistiu. Sorriu, e seus olhos brilharam, no tom de azul mais transparente que eu conhecia.
— Eu vou encontrar você.
Tentei argumentar, mas meu pai me puxou para baixo, e Theliel desapareceu da minha visão quando saiu correndo para fora da casa. Eu estava na escada. Tentei subir de volta, mas meu pai já me guiava para a escuridão submersa debaixo do solo.
— Se for atrás dele só vai atrapalhar. Vamos.
— Mas... — Comecei.
— Theliel passou por coisa mais difícil. Ele vai sair dessa.
Pensei naqueles olhos. Me lembrei da sensação de sua boca na minha, e imaginei a dor de nunca mais poder sentir. E conforme descia os degraus daquela escada mofada, rezei para o vento, que não deixasse minha alma se partir. Que ajudasse Theliel a voltar para mim.
Eu já havia tropeçado seis vezes. Meus braços doíam com o peso da criança, o cheiro de mofo inundava minhas narinas, e as pernas tremiam incertas ao descer aquela coisa. Já faziam minutos quando finalmente alcançamos o chão sem degraus, e o barulho de tiros parou. Mas... o alçapão não foi aberto. Theliel não nos encontrou. Meu pai nos levou pela única direção que o túnel escuro nos dava: para frente. Levou menos tempo do que eu havia esperado, mas ainda assim o suficiente para nos fazer suspirar de alívio ao avistar o fim daquele lugar escuro. Uma luz. O túnel subterrâneo acabava em uma parte da floresta, aparentemente longe o suficiente para que não houvessem soldados ou helicópteros para nos ver.
Inspirei o ar puro da floresta, enchendo meus pulmões o melhor que pude. O bebê se remexeu no meu colo, e esfregou os olhinhos de sono. Como Theliel nos encontraria? Meu irmão apertou meu cotovelo, me levando para uma parte um pouco mais afastada do grupo, como se previsse minhas preocupações.
— Precisamos do Theliel, Sophi.
Concordei com a cabeça. A forma como meu irmão se preocupava com o amigo, era no mínimo maravilhosa. E eu o amava muito por isso. Me agarrei na gola de sua camiseta, e puxei seu corpo contra o meu. Ele passou os braços ao meu redor, e me abraçou como um urso, esmagando a criança em meus braços no processo.
— Como ele vai nos achar? É inteligente, não vai usar o mesmo caminho se isso significar nos colocar em risco.
Pela visão periférica, percebi uma movimentação estranha no local de onde havíamos emergido. Virei a cabeça com tanta força, que senti que podia quebrar o pescoço. Mas era apenas meu pai. Segurando... droga. Ele pretendia explodir o túnel!
— Para! — Gritei— Theliel não vai nos achar assim!
Corri até meu pai, mas era tarde. Ele jogou a bomba para as paredes de terra, e aquilo foi o suficiente para o desabamento. Uma parte de mim ainda tinha esperanças de ver Theliel nos próximos segundos, ou minutos.
— Ele pode nos achar Sophia. Ele pode fazer muito mais do que isso.
Foi quando me dei conta. Theliel sempre estava a um passo à frente, menos com Ganthir. Aquela, foi a única vez em que ele não previu os movimentos do inimigo, que não soube exatamente como lidar com a situação. Busquei a linha de raciocínio que Theliel teria, e tentei imitá-la o melhor possível. Se Ana havia sido sequestrada, e Ganthir era o príncipe, por que Tenya atacaria nossa cidade? Se um não soubesse do outro não faria sentido, se fossem aliados faria menos sentido ainda. Eles já tinham Ana, não era o suficiente? Entendi o que Theliel queria fazer. Ele não voltou para devolver o rastreador para a carreta, voltou para achar respostas. Até onde ele iria por isso?
— Precisamos ir. Tem uma casinha de recursos não muito longe. Precisamos descansar para pensar em algo útil para amanhã.
Meu pai começou a andar para dentro da floresta, mas ninguém o seguiu. Metatorn, Azazel e Cassiade, assim como Gandallia eu e meu irmão ficamos fixos no chão, completamente estáticos como estátuas.
— O que foi? Querem morrer aqui? Sem salvar o mundo?
Naquele momento me dei conta, de que meu pai mataria Theliel. Pela cura do mundo ou não, meu pai o mataria, ou o deixaria morrer nas mãos do inimigo. Troquei um olhar com cada um ali, e percebi que de alguma forma, pela primeira vez em muito tempo, concordávamos com algo. Então estiquei os ombros, e tentei soar o mais decidida possível.
— Não vamos muito longe. Ou pelo menos, não até que Theliel esteja de volta conosco.
Meu pai franziu a testa, conferindo as posturas rígidas de todos ali. Ajeitei o pequeno corpo que repousava em meu colo, enfatizando minha decisão.
—Precisa ser uma base próxima. Ele roubou um mapa das pequenas bases espalhadas pelo país assim que fomos resgatados pelos rebeldes.
Algo como orgulho encheu meu peito. Eu quis elogia-ló por isso, mas ele não estava ali.
— Então... ele está com o mapa?
Abbadon franziu as sobrancelhas. Meu irmão levou uma mão até a cintura e gesticulou para que começássemos a seguir meu pai.
— Ele não precisa. Decorou o mapa em três dias.
Theliel era um gênio. Ele iria nos encontrar.