Voar é uma das sensações mais aterrorizantes que já experimentei. É um frio na barriga constante, uma tontura e enjoo insistentes. Sempre que sou obrigada a subir nas costas de Temrys para voar pelos céus, agarro-me a ele como se minha vida dependesse disso. Porque de certa forma depende. O sangue da linhagem humana de magos pode correr em minhas veias, e se de fato isso acontecer enquanto eu infortunamente morrer, significa que não acordarei com um par de chifres bonitos. Mamãe e tio Kennan correram esse risco quando se tornaram Mitchas, mas estavam prontos pra morrer. Eu não estou. Gosto da sensação do vento gelado em meu rosto, gosto dos cheiros e texturas ao meu redor, e por falar em cheiros... Temrys me joga uma sacola de mantimentos vazia antes de ajeitar o cinto de utilidades que me prende à ele durante o voo, apenas mais uma garantia.
— Pro caso de você vomitar.
Ele explica a utilidade do saco vazio quando percebe que o giro nas mãos com dúvida. Sinto vontade de socar aquele lindo abdômen pela provocação, mas apenas cruzo os braços e jogo o saco para Kushter. Meu primo solta um "Ei" antes de dobrar o saco meticulosamente e enfia-lo em um dos bolsos.
— Vamos dormir por aqui mesmo, esqueçam o voo... vai chover.
Velorn, meu tio-avô que não parece sequer ser mais velho que minha mãe (que não envelhece), de alguns séculos de idade sempre cuida de nós, como um pai. Temrys, como era aluno dele desde muito tempo atrás, metamorfo famoso por seu poder nos olhos vermelhos, procura sempre imitá-lo, sendo um bom irmão mais velho. Não tenho irmãos, mas Kushter é próximo o suficiente. Minha mãe tem muitas ideias loucas, e uma delas foi decidir deixar o prédio imperial para obrigar todos os amigos a morarem com ela na casa em que passou sua infância. Não literalmente a mesma casa, uma reconstrução feita pelo meu pai para agradá-la. Por causa dessa linda ideia, eu e Kushter crescemos juntos como irmãos, já que éramos as únicas crianças no lugar. É estranho me imaginar envelhecendo ao lado dele e de sua mãe enquanto meus pais e o resto dos amigos da minha mãe continuarão jovens para sempre.
— Certo, eu conheço uma pessoa que pode nos dar abrigo pela noite.
Temrys diz, já recolhendo as membranas finas das asas de volta às costas. Sigo meu tio e Kushter pela colina abaixo, necessitada de um cordeiro inteiro pra comer depois do dia de perseguição a bandidos que tivemos. Apesar da enorme crise de anos atrás, alguns Mitchas e humanos insistem em se odiar, mesmo após o próprio Mundo ter sido dividido em dois por conta dessa diferença. O laço Mitcha prova como humanos e Mitchas são compatíveis, os meio-sangue provam o quão poderoso um fruto de uma relação assim pode ser. As vezes penso na vida dos Mitchas que ficaram presos do outro lado do portal, em um mundo onde a raça humana é predominante, e segundo minha mãe cruel com qualquer ser que possua chifres. Segundo ela, Mitchas eram caçados pelo simples fato de existirem, muitas vezes mortos sem nem saber o porquê. Minha mãe não se orgulha disso, mas antes de conhecer meu pai seu trabalho era exatamente esse. Inclusive, quando se conheceram, ela tentou exatamente isso. Mas não conseguiu, depois que viu tanto poder. Toco a corrente de ouro com safiras encravadas que sempre carrego entrelaçada nos cabelos, a magia do meu pai mantida dentro de cada pedrinha. Quando era humana, o colar que meu pai pensava que era dele protegia minha mãe, também banhado em um poder fortíssimo. Então quando eu nasci humana, meu pai fez essa joia pra mim, a qual eu usava não importava a ocasião, como tiara, colar ou até pulseira. Kushter tinha um parecido, mas usava como tornozeleira. Em ambas as joias, o poder roxo se instalava, de Velorn, Kelly, Darknid e Kennan.
— Vou buscar comida.
Velorn declara, já se afastando com sua dupla. Temos uma regra específica de sempre andar em dupla, dormir em dupla, comer em dupla. Acho que tem algo a ver com o fato de que humanos são muito fracos nesse mundo. Armas de fogo são raras e proibidas pelo governador atual, e uma faca branca só é eficaz contra um Mitcha poderoso se o usuário dela for minha mãe. Isso mesmo, minha mãe era a deusa da luta e da caça desde muito antes de aprender a mover montanhas com o pensamento, e eu não passava de uma fracote. Não me leve a mal, sei que cada um tem sua utilidade na equipe e tudo mais, mas o que eu tinha era a inteligência. Me comunicava facilmente e sabia analizar alguém em segundos. Podia definir e descobrir uma mentira, ler pessoas como se fossem livros. Mas se um urso qualquer ou até uma raposa me atacasse... eu simplesmente me enrolava como uma bolinha e gritava. Todos na casa já haviam tentado me ensinar a lutar, até minha mãe, que havia se estressado ao ponto de quebrar uma parede. Ela desistiu dizendo "se o seu forte é o cérebro, então foque nisso! Seja boa nisso e não precisará de um par de facas". Eu queria acreditar nisso, queria de verdade.
Chegamos ao pequeno vilarejo quando o sol quase se escondia atrás das casas altas. Caminhei lado a lado de Temrys, parando pra observar cada tenda de vendedores no caminho. Temrys se irritava e me puxava, até eu ver algo ainda mais interessante e parar de novo. Era sempre assim, eu me distraia muito fácil. Mas também era um disfarce. Apesar de meu avô e meu pai não terem mais nada a ver com o "trono", já que renunciaram o governo no momento em que descobriram a gravidez da minha mãe, todos no país e até no continente sabem quem sou. Notícias se espalham muito rápido, então eles sabem que posso vir a ser a segunda Mitcha mais forte de toda a história. Isso porque meu tio era o primeiro. Mas morreu, e deu um enorme trabalho pra isso. E apesar disso tudo, são poucas os Mitchas com olhos raros aqui, então ver uma Humana de olhos roxos e um Mitcha de olhos vermelhos lado a lado não é muito comum. Eu mantinha meu disfarce porque sabia o quanto as pessoas pensavam que eu era um perigo, então me fazia de burra enquanto andava pelas ruas, como se fosse impossível que eu revivesse após a morte.
— Chegamos. Vou avisar que chegamos, mas já pode ir pro quarto com a porta vermelha e me esperar lá.
Entramos em um prédio alto, provavelmente o único do lugar, todo decorado com enfeites e plantas. Me sinto em uma selva conforme abro espaço pelos vasos de flores pra encontrar a tal porta. Felizmente não está muito longe, e incrivelmente destrancada. Como Temrys diz, não espero que ele chegue cedo, já que precisa avisar para Velorn e Kushter a cor da porta deles. Sim, eu divido quarto todas as vezes com o lindo Mitcha ruivo de olhos vermelhos que cativa metade do reino com aqueles caninos incrivelmente longos.
Aproveito a atual solidão pra tomar um banho, já que cosméticos e toalha estão à disposição. O dia foi longo, o último de três longos dias tentando achar um grupo de bandidos que vinha saqueando o vilarejo em que no momento descansávamos. Então aproveito a água morna o máximo que posso, ciente de que mais uma missão me espera assim que pisar meus pés no piso de madeira de casa. A porta do quarto range, mas não me importo. Temrys é educado e cavalheiro o suficiente pra não olhar pro banheiro, e nunca nem sequer em tentar pensar em fazer algo sem minha permissão. Um pouco estranho quando o cara que divide quarto com você é um dos melhores amigos de seus pais. Meus olhos encontram a parede onde a toalha deveria estar, e meu coração sobe até a garganta. Havia me esquecido da droga de toalha.
— Tem? Pode trazer a toalha pra mim?
Um estalido soa no quarto, algo como louça se quebrando. Subitamente me lembro dos mil vasos de plantas que não só decoravam a recepção do hotel, como o quarto também. Preocupada com meu amigo, me levanto da banheira em um pulo com medo de que algo grave pudesse acontecer com Temrys. Sei que foi idiotice, mas a ideia de sangue saindo daquele corpo me fazia arrepiar. Só que quando sai do banheiro... não foi Temrys quem eu encontrei. Imediatamente me arrependi de estar nua.