Eu odeio verde. Desde aquele dia frio, eu odeio essa cor amaldiçoada. Desde quando tive que voltar para casa no meio da neve, sem minhas botas. O vento gélido chicoteando meu rosto e cabelo molhados, os dentes batendo de raiva e frio. Meu irmão gritando de desespero, enquanto tentava carregar o corpo inerte de nossa irmã, apesar dos braços magros e trêmulos. Naquele dia, no dia em que entendi as diferenças que fazer parte de uma família rica poderia trazer. O dia em que passei a odiar verde. E me apaixonei pelo azul quase branco do gelo.
— Quanto tempo.
Metatorn suspira, passando os dedos pelos cabelos escuros. Ele diz com naturalidade, como se o ódio entre nós fosse inexistente. Sinto vontade de socá-lo bem no rosto, mas me contenho, no momento em que avisto os cabelos longos e ruivos de Ana.
— Ah você veio!
Ela exclama, abrindo e esticando os braços em minha direção. Pilhas de papéis deslizam por seus braços, mas ela não parece se importar. Em vez disso, corre em minha direção, e me envolve em um abraço caloroso. Eu a abraço de volta, feliz por Ana não ter sido dominada por nenhum ressentimento.
— Você está bem? Imaginei que precisaria de tempo, mas senti sua falta.
Ela sentiu minha falta? Sabia que eu precisaria de tempo? Eu nunca imaginei que alguém que não fosse Abbadon poderia sentir minha falta. E me entender tão bem... como Ana. E Az também.
— Também senti sua falta... ah!— digo rapidamente, ansiosa para poder sair com Ana assim que acabar o que quer que minha mãe queira com esse lugar. — Minha mãe me mandou aqui, pra falar com seu primo eu imagino...
E como se eu pudesse invocá-lo, Cassiade surge atrás das portas do elevador em formato de árvore, carregando ainda mais pilhas de papel que a prima. Quando nos vê, ele ignora completamente a sujeira que a mesma deixou no chão, e corre para me envolver com um dos braços, mantendo a pilha no outro. Com suas asas fazendo cócegas em minhas costas, paro para reparar nas de Ana.
Não parecem robustas, fortes ou sequer funcionais. São como uma capa fina de penas em suas costas, quase imperceptíveis. Quase tocam o chão, mas não são compridas o suficiente pra isso. Parece um manto, e não uma alternativa de fuga. Um alívio estranho inunda meu peito quando constato que realmente são asas, que ela passou no teste. A pesar de saber, que ela não estaria ali se não tivesse passado.
— Sua mãe te mandou aqui? Provavelmente é para uma entrevista, já que sua cerimônia é amanhã.
Cass comenta depois que explico o motivo de minha vinda. Meu coração se aquece depois de saber que ele se lembra o mês da minha cerimônia. Essas pessoas... conviveram comigo apenas por um dia, e aqui estamos, como se já os conhecesse há vidas.
— Entrevista?
Repito devagar. Cass e Ana trocam um olhar estranho, enquanto Azazel ainda encara Metatorn, confuso.
— Sim, — Cass explica— entrevista de estágio, pra que quando você ganhar suas asas, possa trabalhar aqui, e estudar durante meio período. Ela me contatou faz um mês, e quando descobri que era de você que ela falava, já separei uma vaga.
À princípio, não tenho reação alguma. Permaneço parada encarando Cass, à espera de uma correção de suas palavras. Mas seu sorriso só aumenta quando ele estende uma mão pra mim. Eu a pego, ansiosa para sair do transe, e principalmente, louca para me afastar de Metatorn. Como Cass pôde contratar alguém como ele?
Cassiade me leva por um dos elevadores enormes, feitos para seres com asas altas. Suas próprias penas tocam meu braço, sedosas e macias alisam minha pele distraidamente. Não sei se ele sente isso, até onde a percepção das asas vai? O elevador para no último andar. A porta se abre, revelando um pequeno corredor e uma porta enorme. Quando já estamos dentro de sua sala, me pego presa em cada cantinho dela. Nas cores vivas, nas prateleiras, na janela imensa e na forma como tudo parece diferente do mundo que conheço. Cass se senta em uma cadeira atrás de sua mesa grande, e apoia os pés sobre ela. Com mais um sorriso, ele faz sinal para que eu me sente.
— Quais eram suas matérias na escola Sophi?
— Literatura. Inglês e idiomas, mas principalmente literatura.
— Gosta de ler?
— Sim!
Exclamo mais alto que pretendia. Imediatamente, cubro a boca com as mãos, e me jogo de volta à cadeira. Mas Cass não parece se incomodar.
— Acha que poderia ler todos os dias?
Franzo as sobrancelhas, lembrando dos dias nublados sem meu irmão. A única coisa que me manteve viva foram os livros que eu lia, debaixo daquele lustre fraco, dia após dia.
— Eu já leio todos os dias.
O sorriso de Cass some. Ele remexe os papéis que havia deixado em sua mesa, com a testa franzida. Pelo que parece ser uma eternidade, aperto uma mão na outra em cima do colo, tentando abafar o nervosismo. Quando cogito sair correndo da sala, Cassiade joga a pilha de papéis com um estrondo na mesa de madeira, que me faz estremecer toda.
— Quando ganhar suas asas, terá até janeiro para escolher sua faculdade. As inscrições começam no ano que vem, até lá você pode trabalhar o período todo, das oito às seis da tarde. Claro que vai ganhar a mais por isso... os fins de semana são livres, feriados também. No seu primeiro dia um de meus funcionários vai te guiar e preparar para tudo. Se aceitar meus termos, podemos preparar o contrato.
Meu queixo cai. Quando eu ganhar as asas? Isso é, se eu ganhar... nem sei se quero mais. Mas pela empolgação em sua voz, sinto que não é boa ideia dizer isso a ele. Então apenas concordo com a cabeça. Me levanto devagar, e quando chego à porta, sinto suas asas se abrirem atrás de mim.
— Sophi... — não preciso me virar para sentir o tom melancólico em seu rosto.— Você não merece menos suas asas, só porque o governo diz que seu irmão não mereceu. Não se arrependa de suas penas.
Pela vigésima vez ao dia, não sei o que dizer. Por isso apenas saio daquele escritório tão lindo, torcendo para que o amanhã me traga um novo dia.