A emoção zunia forte em meus ouvidos, a falta dela em Abbadon me espantava. Cruzávamos a rua mal feita entre o portão e a casa de ferro, onde o escritório do meu pai ficava. Seria o reencontro do século. Qual seria a reação do meu pai, ao ver a escuridão nos olhos de Abbadon? Poderia meu irmão, superar o buraco que o pai havia deixado dentro de seu peito? Azazel abriu a porta, e a primeira coisa que vi, foi Anaita. Ela me abraçou com animação, e não parou de falar do quanto sentiu saudades. Senti uma pontada de culpa por não ter me lembrado dela ou de Cass durante a viagem, mas encontrar meu irmão, conhecer Theliel, e a situação com Metatorn... bom, ao menos a ultima parte já estava sendo resolvida, com meu amigo sendo levado para o centro médico da cidadezinha.
Após abraços em Anaita e Cassiade, meu irmão irrompeu impaciente pela sala, e como se pudesse sentir a presença de nosso pai, deu passos certeiros até seu escritório. Ele não bateu, ou pediu licença, apenas abriu a porta e entrou. Caminhei o mais rápido que pude para poder ver a cena, o momento em que meu pai se levantou da cadeira tão abruptamente, que ela se espatifou no chão. A sala pareceu ficar impossivelmente mais escura. As costas de Abbadon, já rígidas se endireitaram. Meu pai passou uma das mãos pelo cabelo, provavelmente sem saber ao certo o que fazer.
— Abbadon, eu..
— Não fale.
Meu irmão disse simplesmente. A voz era um pouco mais que a frieza pura, um pouco mais que indiferença. Continha muita mágoa. A tristeza de um garoto que havia sido abandonado, sem nem entender o porquê. Um garoto que assumiu a responsabilidade de cuidar da única irmã que lhe restara, porque o pai não foi suficientemente forte para ficar.
— Eu vim falar, e você vai me ouvir. Não te perdoei, e nem vou. Não me importa seus motivos para ter ido embora, eu não ligo. Se a Sophi te perdoou, sorte sua, pois não merece. Daqui pra frente eu vou comparecer às reuniões e partir na missão de encontrar outra pessoa para o sacrifício que nós dois teríamos que fazer, acreditando que você não faria isso conosco. Você não vai se dirigir à mim como seu filho, pois já deixei de ser isso há muito tempo. Sou Abbadon pra você. E se em algum instante, eu pensar que você está pensando em sacrificar minha irmã, eu mato você. O que me falta em asas, consegui compensar de outras formas.
Por alguns segundos, eu e meu pai apenas o encaramos ali, estáticos. Seus punhos pareciam puro ferro, eu havia reparado nele de costas, pela primeira vez desde que o vi novamente. Percebi as cicatrizes que saíam por baixo de sua camiseta, apenas uma pontas avermelhadas. Mas foi o suficiente para me fazer ficar ainda mais curiosa. Com um autocontrole que eu não fazia ideia de onde vinha, permaneci parada quando ele deu as costas para meu pai, e se foi, com passos duros e decididos. Ninguém além de mim, havia entrado no escritório, mas a voz de Abbadon foi alta o suficiente para que todos na sala escutassem. Mas por sorte, quando entraram, não mencionaram o ocorrido. Azazel trocou com meu pai detalhes técnicos, apresentou Theliel e começou a discutir os novos assuntos.
— Senhor, fiquei sabendo sobre sua ideia. Eu descobri dois herdeiros do rei, mas infelizmente eles estão mortos. Morreram nalguns dias atrás.
Meu pai suspirou devagar. E ao contrário do que pensei, ele não perdeu o controle, ou pareceu minimamente preocupado. Mas explicou:
— Temos um plano B. Seria muita crueldade, mas se algum aqui tiver uma ideia melhor....
— Diga pai.
Nada me parecia mais cruel que oferecer um filho em sacrifício. Sem dúvidas, sua ideia envolvia isso, então não poderia ser pior que concordar em perder um deles. Azazel, Metatorn, Abbadon e agora Theliel. Nada me parecia pior do que isso.
— Um homem... descendente do rei acabou de... ter um filho. Fazer alguns dias. Nossa equipe pensou que...
Meu pai não conseguia terminar a frase direito, mas todos ali já haviam entendido. Meu coração era obscuro demais por desejar a morte daquela criança? Talvez. Mas não pude conter a emoção, ao ver uma saída real para a morte dos meus amigos.
— Que ainda não deu tempo do pai amar a criança de verdade.
Da forma como Theliel falou, pareceu mais cruel. Mas ainda assim, menos do que entregar um deles. Azazel não pareceu notar a indignação do irmão, até se ofereceu para ajudar na missão. Mas meu pai, sabiamente notou o cansaço estampado em nossas olheiras, e nos dispensou. Conversaríamos mais tarde.
Cheguei em casa, e fui direto para o quarto com Anaita. Os garotos agora eram cinco para três quartos, enquanto o nosso permanecia vazio. Enchi a banheira enquanto conversava com Ana, ela sentada no chão ao meu lado para ouvir os relatos.
— Ficar aqui foi bem simples até. A organização já tinha desconfianças sobre quem era o homem, então tudo o que tive que fazer, foi distraí-lo enquanto Cass conseguia uma amostra de DNA do copo onde ele havia bebido.
Afundei na água morna, pensando em quantas formas minha vida havia mudado em menos de um mês. Anaita havia criado comigo, um tipo de intimidade que ninguém além de meu irmão havia tido antes. E nem ele tinha mais.
— Bom, lá foi...
— Vocês voltaram com uma bagagem e tanto.
Ela sorriu de canto, arrancando uma risada que eu guardava. Mas uma pontada me atingiu.
— Quem? Qual dos dois?
Perguntei ansiosa, receosa, mas animada por minha amiga. Afinal, eu já sabia por quem meu coração batia, só não estava pronta para admitir.
— Ah, olha... sem ofensas, mas... seu irmão. Ele parece uma pintura, céus, aqueles músculos! E aquele rosto rígido, aquela voz potente! E como é alto!
Engoli uma expressão estranha, ao ouvir meu irmão ser descrito daquela forma. Nunca havia conhecido nenhuma garota que o amasse, não conheci muitas pessoas na vida. Mas Anaita gostar dele, me pareceu extremamente... reconfortante. Não só por saber que ele tinha salvação, mas por não ter sido Theliel. Eu precisava aprender mais sobre ele.