— O que somos exatamente?
Theliel suspirou.
— O que você quiser— Respondeu.
Cassiade havia dividido as latas de feijão gelado para todos, Metatorn as de milho. Azazel havia assado algumas aves. Gandallia e Abbadon comiam em um canto enquanto eu e Theliel ainda nos abraçávamos. Era perfeito demais pra ser verdade.
— E o que você queria que fosse?
Ele pensou por um instante. Entre colheradas eu o encarava, tentando decifrar os pensamentos pelo seu olhar. Não era difícil ver as emoções, seus olhos eram cada vez mais claros para mim.
— Queria ser bom o suficiente pra você. Queria que fosse minha. Mas vamos salvar o mundo, a pesar de não conseguir imaginar uma vida sem você, sei que não a mereço.
Theliel apertava a colher de ferro entre as mãos, observando o objeto com grande atenção. Meu braço direito estava encostado em seu peito, e eu podia sentir a frequência de seu coração. Podia me sentir conectada com seu corpo sem nem tentar, sentia como cada pedaço de mim precisava dele. Pude sentir a dor contida em cada uma de suas palavras. Por isso contive uma bronca, deslisei minha mão livre por seu queixo, até segurar metade de seu rosto com cuidado. Sua pele era macia, ao contrário do que eu havia imaginado. A lembrança das cicatrizes grossas em sua pele me fez estremecer. Como aquela parte macia de seu corpo havia sido corrompida por pessoas cruéis...
— Não quero que pense assim nunca mais. Não existe essa coisa de merecer. O que existe é a vontade de fazer dar certo, e eu tenho essa vontade. Desde que você também tenha, vai dar certo.
Ele colocou sua mão sobre a minha. Era grande o suficiente para envolvê-la completamente, mais que o suficiente na verdade. Então sacudiu a cabeça de leve, e como se uma luz iluminasse sua mente, seus olhos se acenderam novamente.
— Tem razão. Eu... não sei porque pensei nisso. É só que... às vezes eu olho pra você, e não consigo entender como consegui sua atenção. Gostava tanto de você, mas nunca pensei que gostaria de mim também.
Quase ri com a palavra. Gostar? Gostar dele? Theliel era o garoto mais incrível que eu havia conhecido, ele fazia cada parte de mim queimar e formigar. Me fazia sorrir, meu estômago se revirar, e as vezes tudo isso de uma vez. Ele era tudo, e se achava nada ao mesmo tempo. Eu só queria que ele pudesse se ver com meus olhos.
— Você é muito mais do que eu sonhei. Pra ser sincera, não tinha sonhado com isso. Mas naquele dia quando minhas asas cresceram, quando a dor foi tão forte que me apagou... eu quis ter alguém. E de alguma forma muito louca você estava lá. E a dor sumiu. Desde então eu sinto que tenho procurado por você Theliel. Então por favor, não me diz que o meu maior objetivo de vida até agora não é bom o suficiente para que eu o ame. Não gostar, já disse que te amo.
Os olhos dele desapareceram do meu campo de visão por um segundo, quando seus lábios me encurralaram em um beijo profundo. Pude sentir cada milímetro de mim entregue a ele, nem um pouco tímida com o fato de estar em frente a outras pessoas. Estávamos longe o suficiente, parcialmente ocultos pelas folhas de um arbusto próximo.
— Sabe porque você é luz Sophia?
Ele se afastou alguns centímetros de mim, respirávamos ofegantes. Suas mãos buscavam por meu rosto, seus olhos buscavam pelos meus. Eu sabia que algo de importante estava prestes a acontecer, mas desviar a atenção dos impulsos hormonais era quase impossível.
— Não.
Sussurrei. E estávamos tão próximos, que pude sentir nossos hálitos se fundindo um no outro.
— Porque ao contrário de sinalizadores ou lanternas, você ilumina em silêncio. Ninguém percebe, e você não espera que percebam. E isso é uma das coisas mais lindas em você. O amor que você emana, a luz que você transmite. Ninguém percebe até parar pra prestar atenção. Foi por isso que todos concordaram com Cassiade hoje, porque foi o momento que tiraram para refletir. O amor que nos une... vem de você.
Meus olhos se encheram de lágrimas. Segurei os ombros de Theliel com firmeza, como se de alguma forma ele pudesse escapar de mim. Aquilo, aquele sentimento de felicidade extrema que eu sentia quando estava com ele... era tudo tão intenso. Eu ri. Eu gargalhei porque percebi o quanto o amava, e o quanto ele me amava também. E o quanto eu mesma me amava. Acho que a maior prova de amor é essa afinal. Quando a pessoa te faz ver como você é. Theliel colou sua testa na minha, segurando minhas mãos com delicadeza.
— Sophia. Essa vai ser a coisa mais louca que já fiz.
Meu estômago congelou. Contive um gritinho quando ele me puxou pra mais perto, fazendo meu corpo se encaixar perfeitamente no dele, minhas pernas envolvendo sua cintura.
— Eu gosto de loucuras.
Ele se afastou de novo, quase arrancando um gemido de protesto do fundo de mim. Me contive, prestando atenção em seu rosto sério.
— Você quer...
Ele não terminou. Uma explosão cortou o ar, e então tiros. Meus amigos gritaram, e correram até nós. Sem aviso, nos puxaram do chão, e começaram a correr. Gritando e agitando o grupo, Cassiade nos impulsionava pela floresta, tentando bolar com Theliel algum tipo de plano. Azazel estendia os braços para Gandallia e eu, tentando nos proteger do que quer que estivesse atrás de nós. Meus olhos se cruzaram com Abbadon e então... percebi que Metatorn não estava mais lá. Meu corpo travou no lugar. Meus pés simplesmente se fincaram no chão. E quando olhei para trás, tinha um anjo sorrindo para mim. Malditos olhos, eu conhecia aqueles malditos olhos. Eu teria dito muitas coisas, se não fosse pelo braço firme de Azazel, me erguendo do chão.
Corremos até que o dia não fosse mais dia. O véu da noite nos fez parar com seu frio incontrolável. Meus dentes tremiam. Eu só não sabia se era pelo vento gelado, ou pela culpa me consumindo.