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Carta  Para Hadiya

Carta Para Hadiya

Gil Silva


prólogo 1

Hadiya
15 anos antes...
     Me chamo Hadiya, tenho onze anos de idade e sou negra. Comecei a trabalhar cedo, nunca fui em uma escola e nem tive o prazer de fazer coisas que crianças normais fazem, como brincar, ter amigos e fazer altas estripulias.
Nunca tive a oportunidade de fazer essas coisas, porque minha infância foi roubada pelo trabalho, racismo e preconceito.
Quando minha mãe me deu para uma família em troca do meu trabalho, fiquei muito triste, pois o que eu queria mesmo era estudar.
Sabe, eu até compreendo que a minha mãe tenha feito isso para o meu bem, meus dois irmãos Lucas e Heitor e eu, passávamos fome e frio, pois morávamos numa casa feita de tábuas e telhas quebradas e quando chovia costumava molhar tudo, a água entrava pelos buracos e isso era muito ruim e eu sempre torcia para não chover, pois quando chovia muito, meu irmãozinho Lucas sempre ficava doente.
Não tínhamos mais nada para nos alimentar, então eu sempre pedia alguma comida na vizinhança, tinha uma vizinha que era boazinha e dava algo sempre que podia, já a outra era ruim e mandava ir catar comida no lixo para comer e assim eu fazia, se no lixo tivesse algo digerível e que não estivesse completamente estragado, eu pegava, pelo menos não sentiria como se minhas tripas fossem sair da minha barriga de tanta fome.
Eu só queria que meus irmãos, não ficassem com fome, eles eram tão magrinhos... Me lembro de minha querida mãe chorando por não encontrar trabalho e não ter mais nenhuma migalha de comida para nos alimentar.
Foi aí que minha querida mãe conheceu uma pessoa que queria alguém para brincar com seus filhos e em troca teria estudos, o que vestir e comer, mas a realidade era outra e essa família cumpriu com o combinado.
Ainda que a escravidão já tenha passado há muito tempo, sou considerada uma escrava, isso mesmo uma escrava, pois trabalho de graça, tomando conta de duas crianças. Já tem um ano que estou neste lugar e esse pessoal, para quem minha mãe me deu, nunca me deu sequer um mísero tostão, então isso é considerado um trabalho escravo.
Minha mãe mesmo falava que quando ela trabalhava, mesmo que para ganhar bem pouco, ainda assim não era de graça, ela não era nenhuma escrava e seus patrões tinham que pagar mesmo que fosse pouco, pois era o combinado.
Já eu estou aqui de graça e ainda por cima, sendo maltratada por essa gente cruel e preconceituosa.
Para se ter uma ideia, eles me maltratavam quando iam ao restaurante, pois me levavam para ficar de olho em seus filhos e nada mais, enquanto as crianças brincavam e corriam eu tinha que olhá-los e isso só acontecia depois das crianças já terem comido.
Me deixavam com fome para que quando eu chegasse em casa comesse suas sobras, mas, para isso eu nunca liguei, pois já estava acostumada com os maus tratos.
Não deveria nunca me acostumar, mas o que eu poderia fazer?
Nada! Eu era apenas uma criança, eu só queria ir ao colégio e saber ler.
Estudar foi algo que nunca pude, porque antes precisava tomar conta dos meus irmãos, enquanto minha mãe trabalhava e agora tenho que trabalhar.
Acho tão bonito, quem sabe ler!
A menina que cuido, só tem sete anos, já sabe ler tudo e mexer em uma coisa esquisita que se parece uma televisão, eles chamam essa coisa de computador.
Ela coloca um negócio lá e aparecem as fotos que tiraram, já eu nunca sequer assisti TV, pois na minha casa não tinha, já aqui até tem, mas eles não me deixam ver nada e eu não ligo para isso, só queria mesmo era poder estudar.
Da janela do quarto que durmo, consigo ver as crianças indo para a escola, acho lindas as crianças com seus uniformes e mochilas e sempre fico olhando para elas indo e vindo da aula.
Se me perguntassem qual era o meu sonho, eu falaria: "Aprender ler e escrever, saber cantar e desenhar." Mas eu nada sei... Só vejo as outras crianças fazerem.
Será que eu vou viver sempre assim, sem ter nada?
Como vou crescer e ser alguém na vida?
A minha mãe falava disso comigo, que para ser alguém na vida tem que estudar, mas como eu iria ser alguém, se ela nunca me colocou na escola? O que será de mim? Sempre quis estudar e nunca cansarei de repetir isso, é tão difícil essa vida, em que uns têm tudo, enquanto outros não possuem nada.
Contudo, temos que continuar sonhando, pois sem um sonho, o que será de nós? Já não tenho meus estudos, então, tenho que agarrar ao sonho de que um dia irei ler e escrever, pois crianças precisam estudar, precisam viver a infância e não trabalhar, ao menos deveria ser assim e não como eu que sempre trabalhei, sendo nessa casa, lugar em que ninguém gosta de mim, ou na minha casa, só que lá todos me amavam.
Aqui, as crianças têm vergonha de mim e não gostam de que me vejam com elas. Uma vez as meninas iam para um aniversário e como sempre tenho que ir para ajudar, não sei para quê, já que só vou para levar as coisas das crianças.
Quando estávamos chegando perto da casa, onde seria a festa, uma das meninas, mandou que eu me abaixasse dentro do carro, para que as amiguinhas dela não vissem uma negrinha com ela, mas eu não abaixei e me mantive quieta no mesmo lugar, Dona Cristina, ainda ficou me olhando de cara feia, contudo nada falou.
Agora imagina, ter que me esconder só porque eu sou negra! O que eu posso fazer? Eu nasci assim e assim eu sempre serei. Não tenho nada a esconder, tenho orgulho da minha cor e se ela acha que ser negra é um erro, não é problema meu, é deles!
Povo estranho que não gosta de mim, só por causa da cor da minha pele.
Mas... o que é ser negro? Não conheço cor.... Não conheço nada!
Só sei que sou negra porque tem pessoa que falam:
— "Sua negra nojenta!" —  Eu ficava triste, por ser tratada como se tivesse alguma doença de pele contagiosa. Entretanto, o importante é eu, Hadiya, gosto da minha cor e me amo. Eu não posso fazer nada se eles não gostam. Sequer me importo com esse povo.
Sabe, o patrão é muito estranho, uma vez o peguei olhando esquisito para os meus seios, que ainda estão crescendo.
Eu não usava sutiã, mas agora eu uso, porque fui para casa no final de semana e contei para minha mãe o que havia acontecido, nisso, ela falou que eu tinha que usar esse sutiã, essa coisa que me aperta e não é nenhum pouco confortável, mas eu tenho que usar.
Minha mãe falou que meus seios estão crescendo e tem homem malvado no mundo. Eu não entendi nada do que ela disse, mas usei mesmo assim. Ela comprou para mim e eu fiquei feliz de ter ganho um presente.
Ah!
Minha mãe já está trabalhando, mas não sei por que ela não me leva para casa.
Meus irmãos estão em casa!
Por que eu não posso também? Queria tanto ficar com minha família, mas minha mãe briga comigo se eu disser que quero vir embora, não sei a razão de eu ter que ficar sofrendo naquele lugar horroroso, apanhando de pessoas que eu nem gosto e que também não gostam de mim.
Só tenho onze anos e não posso me virar sozinha, caso contrário eu fugiria em busca de algo melhor.
Depois que eu comecei a usar esse tal de sutiã, o patrão não olhou mais para meu corpo. Sinceramente não gosto desse povo ruim, como poderia gostar?
Somente Kevin é bom para mim, ele é o único que não me olha com nojo e até me trata bem, com um mínimo de respeito e simpatia. Tanto que me alimenta escondido e quando eu choro limpa minhas lágrimas e me abraça forte, como se fosse meu irmão mais velho. Ele só tem treze anos e é filho desse povo cheio da grana, como se dinheiro definisse caráter.
Ele falou que um dia, eu terei tudo que eu quiser e eu acredito nele!
Um dia eu serei o que eu quiser ser, mas nem sei o que vou fazer!
Não sei nem escrever meu nome, mas vou ter alguma coisa boa.
Não sei o que é, nem quando vou ter, mas eu terei... eu sinto isso.

Book Comment (1876)

  • avatar
    NunesSamantha

    Amei a história! Muito boa!

    22/07

      0
  • avatar
    santos correanathaly

    Ótimo

    21/07

      0
  • avatar
    Kauan Pietro

    muito bom

    20/07

      0
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