Metatorn mantinha os olhos fixos no chão, e aquilo me assustava. Gandallia era a única que não parecia brava, irritada ou triste, apenas confusa.
— Eu achei isso.
Theliel ergueu um pequeno caderno de couro na mão. Eu me lembrava daquele caderno... papai sempre escrevia nele quando estava trancado no escritório, mamãe amordaçou jogá-lo da janela uma vez. E ele quase chorou.
— Me lembro disso— Abbadon grunhiu.
Theliel abriu o diário, e folheou as páginas, com uma calma avassaladora. O rosto do meu pai ficava cada vez mais vermelho, suor frio escorria por sua testa.
— Vamos brincar assim... eu leio uma parte, e o silêncio continua. Vou deixar vocês pensarem sobre a leitura, e então um de cada vez vai comentar sobre, se quiser. E você— Theliel apontou para meu pai. — Vai nos explicar.
O rosto dele parecia pura estratégia e imparcialidade, parecia... um homem decidido. E era lindo. Cruzei as pernas ansiosa, esperando o que poderia haver dentro daquele caderno tão antigo e secreto. A curiosidade quase me fazia gritar com Theliel por ler tão devagar.
— " Hoje achei uma mulher para casar. Não a amo nem nada, mas o que é o amor? Nada de importante perto da minha missão nesse mundo. Casarei e terei filhos para matar, é esse meu dever" . Essa é a primeira página. Abbadon?
Meu irmão estava com a boca escancarada. Ele a fechou em um estalo, e se controlou para não voar no pescoço do nosso pai. Eu mesma não acreditava naquilo.
— Que merda você é.
Ele só conseguiu dizer isso. Gandallia passou a palavra, assim como quase todos os outros. E quando chegou na minha vez, senti que coisas piores estavam por vir.
— Continue. — Eu disse.
— E-eu pensava assim... mas foi antes de conhecer sua mãe de verdade, antes de ter vocês...
Meu pai se calou com um movimento da mão de Theliel. Ele estava furioso, e eu mal podia esperar para saber o porquê. Meu namorado abriu o diário novamente. Arrepios novos começaram a percorrer meu corpo, eu ainda não entendia o porque.
— " Hoje tive uma chance. E falhei. Meu filho mais velho começou a patinar em um lago congelado, e foi sozinho. Eu poderia ter matado ele ali mesmo, ninguém saberia. Ele só tem seis anos, talvez eu deva esperar mais até que o sacrifício seja completo. Quanto mais velho o indivíduo, mais chances tem de dar certo"
O silêncio pareceu de alguma forma aumentar. Meu coração batia acelerado. Meu pai... pensou em assassinar meu irmão? Independente do motivo. Agora parecia que meu pai havia tido cada um de nós apenas para nos matar. Minhas mãos suavam. Esfreguei uma na outra em uma tentativa falha de me acalmar, mas nada mudou. Theliel deslisou a mão que não estava usando para as minhas, e as apertou em consolo. Não precisei de mais nada para me acalmar. Prestei atenção naqueles dedos longos que cobriam minhas duas mãos juntas. Aquilo foi suficiente.
— Eu tinha seis anos.
O sussurro rouco de Abbadon poderia ter me partido em pedacinhos se eu já não estivesse quebrada. Enxuguei as lágrimas insistentes que persistiam em rolar por minhas bochechas. Tentando me concentrar em algo que não fosse o olhar desolado do meu irmão. Ninguém mais quis falar. Nem mesmo meu pai. Por isso, Theliel continuou a leitura.
— " O dia está claro, por causa do reflexo do sol no gelo. Ensinei a Ariel o que ela precisa fazer, desde que descobri o garoto Metatorn, e o sangue real nele. Por causa dos olhos, vi que ele é ainda mais próximo da linhagem do rei do que meus filhos, talvez quase tão próximos quanto os garotos de olhos mutantes. Minha filha entendeu a missão, com apenas doze anos vai conseguir salvar o mundo."
Um nó se formou na minha garganta. Procurei o olhar de Metatorn, mas ele o manteve fixo no meu pai. Todos pareciam tensos, todos pareciam olhar para o chão imaginando cada cena. A narrativa do meu amor continuou.
— " Ariel tentou cumprir a missão, mas se esqueceu de uma parte. Isso é uma pena, porque com seu corpo no fundo do lago, não vou conseguir derramar seu sangue na pedra. Preciso ir atrás dos garotos de olhos Mutantes. Preciso ir embora antes que cometa o mesmo erro outra vez"
Theliel fechou o diário com um baque surdo. Sua mão ainda estava em cima da minha, mas agora era ele quem parecia precisar de apoio. Sua respiração estava entrecortada, as narinas e olhos dilatados. Theliel trocou um rápido olhar com o irmão, e eu fiz o mesmo. Abbadon parecia assustado, confuso e ao mesmo tempo furioso. A confusão se alastrou, perguntas soaram das bocas de todos, menos de mim e de Metatorn. Meu amigo permaneceu parado no chão, conforme os outro avançavam para cima do meu pai. Eu já não me importava se bateriam nele ou algo assim. Só tinha uma coisa que eu queria saber.
— De que parte da missão Ariel se esqueceu?
Perguntei como um murmúrio. Mas de alguma forma, fui ouvida. Todos se calaram, inclusive o choro do meu irmão. Não consegui impedir as lágrimas que embasavam minha visão, mas também não tive vergonha delas ao virar o rosto na direção do meu pai. Suas asas eram apenas um manto, que ele tentava inutilmente erguer como proteção. Era mais baixo que qualquer um dos garotos, mais fraco também. Tinha se atirado aos lobos.
— A missão de Ariel... — meu pai começou. — Era matar Metatorn, fazendo parecer um acidente. Disse para ela usar os patins. Eu tinha a autorização do pai dele, então... só precisava que fosse um acidente. Ninguém mais teria que sofrer, ninguém levaria a culpa. E o mundo estaria a salvo.
Metatorn finalmente ergueu os olhos para mim. Eles brilhavam. Porque lá... não havia mais culpa.
— Mas quem morreu foi ela. — Comecei.
— E você se sentiu culpado por não ter o corpo, não por ter causado a morte dela— Meu irmão completou.
Unindo toda a fúria que havia se instalado na parte mais pútrida do meu coração, me levantei do chão. E fiz a única coisa que jamais cogitei desde que me conhecia por gente... soquei meu pai. Bem no nariz.