— Se você olhasse por onde anda, não teria tantos problemas.
O garoto me provoca. Sinto meu sangue subir à cabeça, mas controlo minhas emoções conforme me desvencilho de seus braços para me colocar normalmente de pé.
— E se você olhasse por onde anda, também não trombaria em mim.
Apoio as mãos na cintura, e aprecio, com muito gosto os argumentos do sujeito morrerem em sua garganta. Mas que tipo de anjo usa piercings e tatuagem? Meus olhos correm pela recepção do prédio, em busca de Ana. Quando a encontro, ela está rindo descontroladamente, enquanto conversa com um outro anjo. Ele tem cabelos ruivos como os dela, os mesmos olhos castanho-dourados também. Mas a pele dele é mais escura, bronzeada de um jeito bonito. Ela aponta pra mim, e ele segue o dedo dela até onde eu e o senhor mal-educado nos encontramos.
— Sou mais velho, você tem que me respeitar.
O garoto cruza os braços como uma criança mimada, como se sua idade fosse o suficiente para apagar sua burrice. Reviro os olhos com vontade, e decido que gastar energia com aquele tipo de discussão, é no mínimo perda de tempo.
— Não vai falar nada? Quer dizer que estou certo.
Ele bufa e se vira para sair, mas o chamado do garoto ruivo o detém.
— Azazel! Já conheceu a amiga de Anaita?
Azazel, então esse era o garoto que Ana havia falado tão mal. Agora cada uma de suas palavras fazia sentido.
— Essa garota é amiga da Ana? Tá explicado o desastre em pessoa.
Percebo que ele tenta me atingir com as palavras, mas só sinto pena. Porque um garoto tão lindo tem que ser tão chato? Ignorando seu comentário, estendo a mão para o garoto ruivo, que presumo ser Cassiade. Ele a aceita.
— Meu nome é Sophia.
— Sou Cassiade, mas pode me chamar de Cass. E esse emburrado aqui é Azazel, pode chamá-lo de Az.
— Não, não pode.
O garoto esbraveja. Encolho os ombros diante do tom, mas é a única reação que demonstro. Ele parece cada vez mais infantil aos meus olhos. Uma criança birrenta e tatuada, cheia de metais por seu rosto. Não que não seja absurdamente atraente...
— Ana disse que você vai almoçar conosco, podemos ver o festival de noite juntos também.
Por outro lado, Cass parece tão simpático quanto a Ana. Ele sorri, e exibe dentes tão alinhados e brilhantes quanto a prima. Olho para um relógio vermelho pendurado na parede onde uma princesa loira foi pintada, constatando que realmente, já passou de meio dia. Antes que eu possa recusar o convite, minha barriga ronca em confirmação.
— Ótimo, vamos para um restaurante que fica aqui perto, meu carro está no estacionamento.
Cass sai pela porta de vidro, Anaita e Azazel o seguem de perto. Aperto o passo ao máximo, tentando não ficar para trás. Quando ele dobra a esquina, um estacionamento aberto entra em nosso campo de visão, exibindo carros caros e com certeza novos em folha. Cassiade aperta uma chave automática, que faz um carro preto e brilhante apitar, então se dirige à ele. Ainda um pouco envergonhada, me enfio no banco de trás, enquanto Azazel e Ana brigam pelo banco da frente.
— Não se assuste, eles são sempre assim.
Cass me tranquiliza, quando Ana solta um palavrão cuja a experiência eu não conhecia. Sinto meus ombros se encolherem quando ela ganha a discussão, fazendo com que Azazel se atire no banco ao meu lado, a cara fechada e os longos braços cruzados. Lanço um olhar para seu corpo, porque ainda não havia conseguido identificar os desenhos e formatos tatuados de preto em sua pele. Observo a forma como os desenhos confusos se fundem, coisas soltas e aleatórias se tornam uma só. O borrão de tinta negra sobe desde seu cotovelo, até sumir debaixo do tecido fino da blusa branca. Para depois aparecer novamente, saindo pela gola até mais ou menos metade do pescoço. Quando dou por mim, meus olhos já estão em sua boca, na pequena esfera de metal que a enfeita. Na verdade isso serve para ressaltar seus lábios bonitos. E cheios. Subo mais um pouco o olhar, para seu nariz. Há uma esfera de metal ali também, e muitas argolas de prata em sua orelha. Meus olhos se desviam para suas sobrancelhas, onde mais esferas escuras a decoram. Então... meus olhos caem para os seus. E é apenas nesse momento que me dou conta de que estou encarando descaradamente um desconhecido. Ele estava me observando também. Para amenizar o constrangimento, lanço a ele um sorriso fraco, mas tudo o que recebo de volta é um revirar de olhos.
As árvores cheias e verdes passam por nós muito rápido, tento me concentrar nisso. No movimento do veículo, e não no anjo absolutamente mal-educado que estava sentado ao meu lado. Evitei virar a cabeça em sua direção, porque sabia que se chegasse perto desse movimento, meus olhos me trairiam. Não porque seus músculos ficavam extremamente atraentes e marcados debaixo de toda aquela tinta preta, não porque o contraste do negro em sua pele tornava seus olhos ainda mais azuis. E sim porque ele era muito... estranho. Sim isso mesmo, toda a sua aparência angelical coberta com os piercings e tatuagens, o tornavam estranho. Nada além disso.
— O que vai fazer depois de sua cerimônia Sophi?
Sinto um frio na barriga quando Cass me chama pelo apelido, algo que só meu irmão fazia até então . Mas é um frio bom, confortável.
—  Ainda não faço ideia. — penso em minhas habilidades limitadas, mas me lembro de uma em específico. Memória fotográfica, e facilidade em ler rápido.— Existe algum trabalho ou faculdade onde a única habilidade exigida seja ler?
Por algum motivo, Azazel se remexe inquieto, mas não tenho tempo de perguntar o porquê. Cassiade entra em outro restaurante, na área de alimentação, dessa vez em uma espécie de estabelecimento chique. Só a conta de uma entrada naquele lugar devia custar um rim, eu não queria entrar. Estava prestes à dizer o quanto estava atrasada para algo aleatório, apenas para fugir dali, quando Cassiade anunciou:
— Já pensou em trabalhar em uma editora? Tudo o que terá que fazer, é... ler.